O que vem depois de “o governo de Bolsonaro não é liberal”?

Edmilson junior
5 min readMar 14, 2021

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Foto: Sérgio Lima/Poder360–16 jul. 2019.
Foto: Sérgio Lima/Poder360–16 jul. 2019.

O podcast O assunto do dia 23 de fevereiro de 2021 teve como tema a intervenção de Bolsonaro na Petrobras. A jornalista Miriam Leitão, convidada do episódio, ao comentar as ações do presidente, afirmou: “Bolsonaro não fará um governo liberal, não é um projeto de respeito às regras da economia de mercado, ele fará intervencionismos populistas. É o projeto dele”. Essa narrativa de afastamento do governo Bolsonaro de um “verdadeiro projeto liberal” tem ganhado força ultimamente em diversos setores políticos à direita do espectro político e, ao que me parece, é um ponta-pé inicial para uma estratégia eleitoreira para 2022, caso Bolsonaro não faça tramitar e aprovar a maioria dos projetos liberalizantes — mesmo tendo comprado o Centrão — ,ou sua aprovação definhe diante da opinião pública.

A questão é: mesmo que Bolsonaro não consiga pôr em vigência todo o planejamento construído por sua equipe econômica e essa narrativa continue, é correto afirmar que o governo eleito em 2018 é qualquer coisa (intervencionista, fascista, populista…), menos liberal?

Ora, os que reproduzem tal narrativa acreditam estar em uma ofegante corrida em busca de um feixe de luz no fim do túnel, mas, na verdade, estão usando um óculos de realidade virtual Shinecon VR 6.0 enquanto correm em uma esteira ergométrica corroída pela ação do tempo. A leitura do liberalismo já é outra, não é a pensada por Locke, Adam Smith ou David Ricardo. Inclusive, nós historiadores consideramos que desde de a década de 1970 a partir da atuação dos Chicago Boys na ditadura chilena, de Reagan nos EUA e Thatcher no Reino Unido inaugura-se em termos práticos o que chamamos hoje de neoliberalismo.

Em outras palavras, assim como qualquer outra construção ideológica, o pensamento liberal se transforma ao longo do tempo, a partir da participação conjunta de intelectuais que contribuem com tal perspectiva de mundo (como Mises, Hayek e Friedman) e, principalmente, a partir das experiências práticas vivenciadas em lugares como Chile e Reino Unido dos anos 1970 até o início do 1990.

Os que entendem os pensamentos sociopolíticos como estáticos, inertes e acima de tudo aqueles que buscam uma essência ideológica liberal, agem da mesma forma que o ‘comunista’ não organizado (que acredita que o verdadeiro marxismo-leninismo é o dele) que prefere fazer cosplay de bolchevique e usar uma ushanka decorada com uma foice e um martelo sob os 34,2º graus do Verão brasileiro.

Mais do que isso, tentar tatear uma “essência” do liberalismo é desconhecer a própria história dos movimentos revolucionários burgueses inerentes a essa corrente ideológica. Alguns liberais brasileiros insistem em repetir a frase “liberdade por inteiro” como pilar principal do “ser liberal”, mas esquecem ou tentam silenciar que a própria Revolução Americana conservou os escravos, dizimou indígenas e conservou a pobreza no processo de independência dos Estados Unidos da América. A França, palco da sempre rememorada Revolução de 1789, em primeiro momento, pôs fim ao absolutismo e publicou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que, em tese, garantiria que os homens, a partir daquele momento, nasceriam livres e iguais em direitos, prometia garantir a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Contudo, a realidade, era um pouco diferente tanto na metrópole francesa, quanto em suas colônias, afinal, creio que a Guerra da Indochina (1946–1954) e a Revolução argelina (1954–1962) não foram eventos festivos de comemoração a presença do Estado francês no continente asiático e africano.

O fato é que o neoliberalismo enquanto a principal forma de gerir o sistema capitalista no último quartel do século XX e nessa primeira metade do século XXI tem como características gerais o favorecimento dos direitos individuais à propriedade privada e o livre comércio. Segundo os liberais, a desregulação e a privatização associadas com a competitividade favorecem a eliminação dos entraves burocráticos, melhoram a produtividade e diminuem os custos devido à redução tributária. No entanto, para garantir essas “liberdades”, é necessário que o Estado aja em favor do mercado, criando-o, ou projetando um sistema de mercado. Em outras palavras, é preciso que o Estado se (re)organize — intervenha — constantemente para garantir um “lugar ao sol” na competição com os outros Estados.

Diante disso, apesar do essencialismo conceitual de alguns liberais que enxergam a possibilidade de um Estado mínimo não interventor, dentro da lógica neoliberal, o Estado é forçado a intervir primordialmente para conduzir a economia do país aos caminhos traçados pelo “mercado”. Nesse sentido, o Estado favorece determinados setores em detrimento de outros, o que consequentemente acarreta um aprofundamento da desigualdade na dita “livre concorrência”. As consequências dessas ações são, por sua vez, o crescimento do poder monopolista de certos conglomerados financeiros, afinal, o mercado, apesar de ser lido e reproduzido como algo abstrato, como um espectro, nada mais é que um conjunto de empresários poderosos que ditam — em acordo mútuo — onde e quando investir.

Em resumo, com essas palavras, não queremos dizer que o governo Bolsonaro é o mimetismo de países como Nova Zelândia, Canadá e etc. Hoje, o governo brasileiro flerta com o autoritarismo e dá acenos a um golpe ditatorial, contudo, queiram os políticos e intelectuais liberais, ou não, governos ditatoriais podem possuir uma economia aos moldes (neo)liberais como nos mostra a já citada experiência chilena na América Latina durante o governo autoritário de Pinochet ou, mais contemporaneamente, no mesmo país, a presidência de Sebastián Piñera. Em suma, vocês liberais, podem denominar o governo eleito em 2018 de autoritário, fascista ou qualquer outra coisa, desde que assumam que sua economia-política é (neo)liberal.

Mas se vocês continuarem a recorrendo a essa narrativa com o óbvio objetivo de desvincular a imagem de vocês da dele — para fins eleitoreiros em 2022 —, de fazer esquecer o amplo apoio dos setores liberais à candidatura dele em 2018 — sob o cínico discurso de confiança no Ministro Paulo Guedes -, estaremos aqui para lembrar, e lembraremos. Lembraremos do apoio de vocês às reformas de austeridade fiscal que em nada beneficiaram as trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. Lembraremos da dicotomia que criaram sobre “vida” e “economia” durante a pandemia do novo coronavírus nos meses de lockdown em 2020 e, consequentemente, lembraremos da influência de vocês na eleição de um governo que acumulou, até o presente momento, o infeliz número de 277.102 mortes por covid-19 e, seu líder, não contente, teve audácia de dizer-nos: “Chega de frescura, de mimimi. vão ficar chorando até quando?”.

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