Carta para um outro eu

Edmilson junior
3 min readApr 10, 2021

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Acho que todo mundo minimamente consciente da realidade, de suas causas e do que pode estar por vir, está mais ou menos mal. O problema é que, pelo que tenho visto, esse “todo mundo minimamente consciente” é um tantinho assim de pessoas. O que, claro, me preocupa. Me preocupa não só porque eu e todos que amo podemos sofrer com o desleixo dessas pessoas, mas porque se numa situação de calamidade pública, onde a empatia é constantemente puxada de nossas entranhas até a superfície do nosso ser, essas pessoas não deixam aflorar o afeto pelo outro em ações solidárias ou em palavras carinhosas, imaginem no mais monótonos dos dias de primavera. O que quero dizer é que apesar de Žižek me motivar a resistir diante dessa realidade brutal e buscar a solidariedade, esses dias eu estou mais para os escritos Byung-Chul Han e isso é tão problemático quanto decepcionante. Afinal, logo eu, socialista convicto, visualizador de um mundo sem exploração e sem desigualdades, escrevendo aqui sobre desesperança e cansaço… chega a ser vergonhoso. Me olho de fora e me pergunto se realmente acredito ou, mais além, se em algum dia eu realmente acreditei em qualquer palavra que já saiu da minha boca, ou se tudo foi puro exercício de sofismo para exercitar o meu ego.

Tem sido difícil. Todos os dias eu busco reagir a esse sentimento que, olhando direitinho, mais parece medo do que desesperança. Todos os dias eu tento. Acordo às 5:50 da manhã, tomo banho, passo o café enquanto, quase sempre, derreto a manteiga no pão. Como devagar e quase sempre ouço um álbum que gosto. O resto do dia poderia caminhar nesse ritmo, afinal, tenho livros para ler, pesquisas para desenvolver, artigos para escrever, documentações para catalogar… mas, num estalar de dedos, a realidade entra em slow motion e meu consciente é sugado para um vazio. A única sensação nesses momentos é de que eu estou submergindo, tão pesado quanto um bloco de cimento, e não importa o quanto eu lute, afundo cada vez mais. Parece uma espécie de hipnose que chega nas horas mais inoportunas.

E pior, eu saio desse transe tão desorientado quanto alguém que acorda de supetão com o susto de um pesadelo. E já que mencionei pesadelo, sem dúvidas, esse mês tem me trazido os mais estranhos. Outro dia sonhei que estava salvando alguns alunos de uma espécie de dilúvio. O bairro estava alagado e eu, que na verdade nem nado tão bem, estava buscando as crianças que ainda estavam na correnteza e entregando para uma colega de trabalho na superfície. No sonho, em determinado momento, fiquei submerso e com muita dificuldade alcancei a superfície, mas ao invés de descobrir uma cidade inundada, acordei, ainda dentro do sonho, de cara para uma frase pichada, em vermelho, na parede: “se você conseguiu vir até aqui, não sucumba”. Ao meu redor havia pessoas que, ao que parece, passaram ou estavam passando pelo mesmo processo que aparentemente eu tinha passado. Aquele lugar me parecia uma espécie de retiro espiritual de resistência em um mundo pós-apocalíptico, mas não tenho certeza. Parei para refletir sobre esse sonho por vários dias, cheguei a conclusão de que a mensagem era óbvia: “não sucumba!”.

Embora eu não ligue muito para sonhos, isso me deixou mais esperto no dia a dia. Como se a frase me voltasse à cabeça sempre que a realidade entra em slow motion e meu consciente afunda no vazio. Nesse momento, a frase serve como um apoio em que eu me seguro com todas as forças para não sucumbir diante do egoísmo declarado de uns e da solidariedade mal-intencionada de outros. No fim, acho que ainda acredito em outro mundo possível. Minha fé em algo além de nós, e em alguns, vem me permitindo isso.

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