“CPF cancelado!”: o fetichismo da morte e a política do medo

Edmilson junior
6 min readMar 28, 2021

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Flávio Bolsonaro (de terno) e Eduardo Bolsonaro (de camiseta rosa) visitam Sikêra Jr. na TV A Crítica, em Manaus. Reprodução/Instagram.

Ter um sogro eleitor convicto de Bolsonaro quando se é declaradamente de esquerda, em algumas situações, pode não ser a melhor experiência do mundo, mas, assim como muitas outras experiências desagradáveis do cotidiano, pode nos trazer algumas doses de reflexão. Motorista de aplicativo, preocupado com os impostos aplicados pelo Estado, com as taxas abusivas das instituições de trânsito, com o preço da cesta básica, o preço da gasolina, a violência na cidade e com a corrupção no país, meu sogro, como a maioria dos trabalhadores brasileiros, têm pouco tempo de lazer durante o dia a dia. No entanto, em seu cronograma apertado há quase sempre um tempinho para o Alerta Nacional, programa apresentado pelo jornalista Siqueira Junior, que tem o objetivo de informar os telespectadores, em suma, sobre os últimos crimes e delitos que aconteceram em território brasileiro.

A peculiaridade de Siqueira Junior — mesmo diante de outros programas de jornalismo-policial — é a maneira como ele conduz e comenta as notícias de investidas mal sucedidas de criminosos. Quando algum bandido morre em confronto com a polícia, por exemplo, ele reúne no palco parte de sua equipe (vestida com roupas exóticas, munidos de cartazes que buscam provocar humor) que canta em coro, junto a uma música de fundo, a marchinha de carnaval: “ele morreu, ele morreu, problema dele, antes ele do que eu. Bandido bom é bandido morto […]” e repetem inúmeras vezes: “CPF cancelado!”, de tal forma que toda aquela apresentação gruda na mente de qualquer telespectador como chiclete em calça jeans.

Em minha perspectiva, o objetivo da emissora nesse espaço de tempo é tornar fascinante a violência que assola os centros urbanos brasileiros, dessa forma atrair uma audiência predominantemente pobre e periférica. Ao assistir as reações do meu sogro assistindo o programa, o que me chamou à reflexão foram justamente as causas e os impactos dessa banalização da morte e, principalmente, a consequente propagação do medo intrínseco a esse processo.

Fico forçado a acreditar que esses programas de televisão possuem uma grande audiência porque seus espectadores, em grande medida, amedrontados pela violência urbana, enxergam nas notícias de investidas mal sucedidas de criminosos um alívio, um alento. Como se automaticamente o indivíduo pensa-se: “Ufa! Menos um. Se continuar assim, nossos problemas vão acabar”. Essa mobilização das pessoas através do medo, como vocês leitores bem sabem, não é recente no Brasil e teve seu auge nas eleições de 2018 através dos mais de 57 milhões de votos conquistados pelo atual Presidente da República Jair Messias Bolsonaro.

Segundo o filósofo esloveno Slavoj Zizek, devido a efetivação da pós-política — ou os discursos que afirmam abandonar “as ideologias” e se concentrar na “gestão” e na “administração especializada” do Estado — e da biopolítica — a regulação da segurança e do bem-estar das vidas humanas [quais?] — pelo neoliberalismo, a única forma de introduzir paixão nos indivíduos, é mobilizá-los através do medo. O medo da violência, o medo do outro.

E não me entenda mal, a compreensão de que hoje, na fase do neoliberalismo, o medo é utilizado como instrumento político não significa dizer que no Brasil, de onde falamos, a criminalidade não seja uma realidade e que essa realidade não seja alarmante. As estatísticas são estarrecedoras, de maneira que, por exemplo, durante o auge do isolamento social brasileiro em abril de 2020, registou-se um aumento de 8% no número de homicídios em relação ao mesmo mês em 2019.

Especificamente no Nordeste do país, os nove estados que compõem a região tiveram alta no índice de homicídios, o Ceará com a maior taxa de elevação ultrapassou os 36% em janeiro e abril de 2020, se comparado ao ano anterior. Além disso, no Brasil como um todo, temos uma das polícias que mais mata e mais morre ocasionando o que vários cientistas sociais, filósofos e políticos veem denominando de genocídio de uma população jovem, periférica e, sobretudo, negra.

Tendo esse panorama de alta astronômica anual da criminalidade no país, é natural que inúmeros indivíduos apontem caminhos para encontrar soluções, em suma, soluções fáceis, rasas, que atrapalham ao invés de resolver. A partir disso, formulamos nossa questão central: em que medida a política do medo impulsionadas pelo neoliberalismo e o próprio neoliberalismo em si, nos impedem de pensar soluções para tais problemas?

Bom, em linhas gerais, os índices apontados anteriormente e os inúmeros outros que aqui não foram citados destacam o que comumente conhecemos por violência. No entanto, sendo um fenômeno complexo, é importante destacar que através de Slavoj Zizek, entendemos a violência como um triunvirato. A parte mais visível, a que faz percebermos a violência como uma coisa só: um crime, uma agressão policial, um ato de terrorismo ou de conflito armado, por exemplo, é apenas uma coluna dos três pilares do fenômeno da violência. Essa primeira coluna, a mais visível — e geralmente associada a um “pano de fundo de grau zero”, de paz, de normalidade social — é denominada de Violência Subjetiva. Esse pilar está associado intimamente com outros dois, a Violência Sistêmica e a Violência Simbólica que constituem, na visão de Zizek, a Violência Objetiva. Ou seja, a Violência Objetiva acontece de forma invisível nas malhas da “normalidade social”, no citado “pano de fundo de grau zero” e é constituída pela Violência Sistêmica, que consiste nas consequências coléricas da reprodução regular de nosso sistema econômico e político — capitalista — e a Violência Subjetiva consiste na imposição de uma determinada ideologia que impõe um determinado universo de sentido para coisas e pessoas, assim, segregando, hierarquizando e silenciando.

Ora, assim como José Pedro — um grande amigo — me indagou, você leitora ou leitor pode se perguntar: “oxe, violência subjetiva pra quem? só se for pro intelectual de gabinete que tá escrevendo esses conceitos aí sem o mínimo de vivência na periferia”. Pois bem, a denominação Violência Subjetiva ocorre porque os crimes que nos prejudicam concretamente no dia a dia da periferia, por exemplo, são consequências de processos que projetam essa realidade social de forma contundente. Esses processos são orquestrados pela Violência Objetiva (Sistêmica e Simbólica) que é responsável pela reprodução da realidade do sistema capitalista e suas mazelas.

Nesse sentido, as formas de atuação da pós-política e da biopolítica guiadas pelo neoliberalismo utilizam o medo como política e a violência como um espectro natural e fascinante da sociedade, nos provocando pavor. Esse sentimento, estrategicamente imposto em nós, nos coloca em uma situação de vulnerabilidade analítica diante de uma realidade calamitosa, ao que parece tão calamitosa quanto a da fictícia Gotham City (cercada de criminosos e arruaceiros malignos), o que nos conduz à pressa por uma solução urgente que, por vezes, passa por um raciocínio parecido com a de uma cidade que anseia ser justiçada por um bilionário porradeiro. Diante disso, apesar dos problemas requererem celeridade, se continuarmos a pensar única e exclusivamente em resoluções superficiais — como o encarceramento em massa, por exemplo — estaremos fadados ao fracasso enquanto sociedade.

Portanto, é preciso pensar o fenômeno social da violência enquanto problema intrinsecamente do universo político, levando em consideração não apenas os atos criminosos, as ações de vandalismo, as agressões policiais ou os eventos de terrorismo, mas principalmente suas causas. É preciso avisar, no entanto, que isso só será possível se abandonarmos os discursos de negação da política e enfatizarmos que as mazelas que hoje nos afligem são oriundas de nosso sistema político-econômico. Caso contrário, nossas cidades se tornarão imitações mais grotescas de Gotham, onde mocinhos e bandidos existem numa dependência mútua e arquitetada, como no enredo da animação Megamente, onde o protagonista cria seu próprio antagonista para continuar seus atos de terrorismo.

Bibliografia

ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014.

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